Vem, me consola de novo, diz que vai ficar tudo bem. Fala que foi apenas uma fase ruim, algo que precisávamos passar para aprender e evoluir. Diz que foi proposital, pois sem dor ninguém muda e sem mudança seríamos para sempre os mesmos. Vem, conta que o sofrimento veio de uma vez só e que nunca mais vamos precisar sofrer de novo. Fala que todos os defeitos sumiram e que de agora em diante as brigas serão por causa do pão de forma não ser integral e porque esqueci o guarda-chuva em casa. Diz que todos os problemas foram sanados e que a nossa única preocupação agora é ser feliz. Vem, vira para mim e fala que todos os gritos serão transformados em sorrisos, toda a grosseria em afagos e toda a hipocrisia em devoção. Fala, sem medo, que você só queria me transformar na pessoa mais contente do mundo, mas que precisou dar muitas voltas para chegar perto da alegria. Diz, me abraçando, que essa é a hora da redenção e tudo o que a gente sente um pelo outro será elevado. Vem, do meu lado, e explica que cada lágrima se transformará em remissão eterna. Fala que os nossos pecados se transformaram em bênçãos, que o carinho foi canonizado, os desejos beatificados e o amor santificado. Vem, bem perto, e conta que tivemos um início ordinário, pulamos a metade da história e já vivemos e sofremos pelo término. Fala, encostando o seu peito no meu, que a libertação vem no meio. Diz que o meio é agora e que o agora nunca mais terá fim.

Vivo pela metade. Metade do meu dia não é meu e a outra metade é pouco para transformá-lo em um dia inteiro. Não sou eu quem escolho qual metade viver, vivo pelas metades que me dão. Metade do meu dia é de trabalho e a outra metade de responsabilidades, com o que preciso para existir. Busco pela minha cara metade, luto pela metade de uma garrafa de cerveja com meus amigos e preciso de mais do que a metade de uma noite de sono para descansar. Já tentei me dividir, mas sei que se metade de mim não da conta e 1/4 deixa de ser matemática para se tornar burrice. Sou metade das vontades, metade dos esforços e metade de quem eu gostaria de ser. A outra metade, a que gostaria de ser quem sou, deve estar inteira dentro de mim.

Não tenho mais forças. Carrego diariamente, desde o dia em que nasci, as bagagens que a vida me deu. As cobranças familiares, o desempenho no trabalho e a entrega no relacionamento são a tríade sagrada de tudo o que tenho que carregar. Acho que lido muito bem com os meus próprios problemas, até você chegar com os seus. Eu sou proativo, ajudo, sem problemas. Todo mundo pode deixar um pouco dos problemas com os outros. Precisamos ter com quem contar, e se tivermos alguém para carregar um pouquinho da nossa bagagem, temos tudo. O problema é quando você deixa totalmente as suas bagagens comigo. Não tenho braços para carregá-las, então as coloco sobre a minha cabeça. Automaticamente, seus problemas dominam a minha mente e a minha bagagem se mistura com a sua. Já não sei mais o que é meu ou seu, só quero me livrar. Preciso me livrar desse peso, dessa dor e desse monte de problemas. Já não quero mais saber quem é o verdadeiro dono. Vejo um monte de lixo que acumulamos em nossa trajetória e quero descartar tudo. Me ajude. Não precisa separar as suas coisas e partir, mesmo. Mas, por favor, me ajude tirando o lixo das bagagens para que juntos possamos dividir malas vazias, para enchê-las desafios e não de problemas. Para forrá-las com futuro.