A coisa parou de andar. Não sei explicar muito bem, mas até vou tentar. É como estar aproveitando a praia num dia ensolarado qualquer, entrar no mar, começar a nadar para frente e a maré te puxar. É bem parecido também quando você sai disposto pela manhã, mas fica algumas horas no trânsito, parado, inconsolável. Nesses casos, não há muito o que fazer a não ser aguardar a maré estar a seu favor ou o trânsito fluir. Como eu disse, não sei explicar muito bem e de fato não consegui, pois ao contrário do oceano e do congestionamento, não tenho visto nenhum progresso. Aliás, tenho visto algo sim, mas é regresso.

Tenho me sentido com cinco, seis ou sete anos, na época que eu imaginava que quando todos em casa já estivessem dormindo, no meio do breu, apareceria um monstro. Sentia medo, mas nunca vi o tal do monstro, honestamente. Hoje é meio parecido, só que as luzes estão acesas, mas o monstro continua invisível. Sei que quando eu era criança o monstro era apenas uma pulsão, minha imaginação trabalhando a forma com que eu devia encarar o escuro e o fato de ficar sozinho. Hoje o monstro não faz parte da minha pulsão. Ele é impulsionado pela pulsão dos outros que me cercam. Sou eu, administrando o monstro dos mais diversos sentimentos alheios, criando um só para mim.

A soma dessas energias só me faz pensar em uma lenda chamada “Cabeça de Burro”. Ela conta que um lugar não progride se há uma cabeça de burro enterrada no local. É o meu monstro e o dos outros. Sinceramente, eu já identifiquei a cabeça de burro – ou as cabeças. Aliás, quem enterrou a cabeça nesse lugar, se um dia precisar de dinheiro como coveiro, morrerá de fome. A cabeça está ali, aparecendo. Todos estão vendo, mas ninguém faz nada.

Se estou prostrado, a culpa é da cabeça de burro. Tenho visto várias, mas não posso desenterrá-las. As cabeças estão vivas, com tronco e membros, mas os donos das cabeças preferem mantê-las embaixo da terra por ser mais confortável. Burros.