A gente se faz. A gente se faz de bobo para não machucar o outro, evitando dizer tudo o que vê ou pensa para não criar caso e estragar um bom momento. A gente se faz de desentendido, fingindo não ter escutado uma ofensa ou grosseria, para manter a saúde desse relacionamento. A gente se faz de louco para não ter que sofrer com coisas pequenas, agindo naturalmente na pior das hipóteses. A gente se faz de comediante quando o outro está triste, porque sabemos exatamente de quais piadas ou gracejos com a voz o outro irá rir, esquecendo por ao menos uma gargalhada de tempo dos problemas. A gente se faz de interessado para cumprir uma de nossas vontades, como ir ao cinema assistir um filme chato que somente um dos dois gosta ou dormir do lado direito da cama porque o outro tem insônia quando não dorme virado para a parede.  A gente se faz de chef para nos agradarmos na cozinha, ainda que um odeie molho ao sugo e outro não suporte o cheiro de peixe cru. A gente se faz de preguiçoso para podemos ficar mais tempo juntos na cama. A gente se faz de proseador para que o nosso papo nunca acabe. A gente se faz de desocupado para termos mais momentos com o outro. A gente se faz, para fazermos do nosso jeito. A gente se faz para deixar o amor nos fazer.

Abri a folha do passado. Estava amassada, jogada em um canto, mas isso não me impediu de consumir o seu conteúdo. Assim como as marcas da folha, descobri de onde vinham as minhas marcas. Minha mente ficou junto com o passado e fez questão de tentar apagar o motivo de alguns traumas. Compreendo a boa intenção como mecanismo de defesa. Infelizmente, apagando a raiz de uma dor ela só ramificou inúmeras outras. A mente tentou passar a folha do passado, na esperança de desfazer todas as marcas do papel. Mas marcas não somem, não se apagam, são eternas, assim como um trauma. Para anular o peso de um trauma, basta entender os motivos do passado. Um trauma não some, ele perde a força.

E se não te faz feliz, como fugir?
A rotina, as ordens sem nexo, o pequeno poder, a ineficiência, a procrastinação. A insistência diária de sorrir artificialmente ao cumprir funções. A deficiência de ficar à mercê por doze meses para finalmente ter alguns dias de folga. É só dinheiro. É só futuro. É só pelo outro e nada por você.

E se não te faz feliz, por que ficar?