Não aguento mais esse monte de remédio. Omeprazol, ácido acetilsalicílico, rivotril, paracetamol, diclofenaco e uns outros que nem sei o nome, tudo para me manter de pé. Como é difícil ser velho. Dói tudo. Dói essas crianças gritando alto na rua. Na minha época não era assim. A gente voltava da escola quieto, comportado e andava por 10km até a roça. Hoje é tudo fácil com ônibus, metrô e perua escolar. É por isso que essa meninada cresce e vira bandido. Tem vida boa, sabe? Nunca apanhou de verdade. Tudo hoje é frescura. A mãe não pode mais bater, tem que colocar de castigo senão perde a guarda da criança. Bati em todos os meus filhos quando precisei e estão ótimos, com casa e família. Essas crianças não vão sobreviver nesse mundo, não vão mesmo. Não pisam descalças na rua, não jogam bola, queimada, barra-manteiga, peão, bolinha de gude, não criam anticorpos. Só sabem ficar nesse tal de computador, num tec tec tec sem fim que dá até dor de cabeça. Vão aprender o quê com vida nesse negócio? Não sabem nem mais o que é mandar uma carta, fazer uma ligação. Hoje é tudo chat. Tudo é conversinha com gente estranha, que nunca viram na vida. Por isso que tá tendo um monte de estupro, sequestro, órgãos vendidos, essas coisas. Os pais não tão nem aí, nem sabem o que os filhos tão fazendo. Depois que morrem, os familiares aparecem no jornal chorando, dizendo que não sabem como aconteceu. Imagina! Se tivessem ficado de olho, dado uma boa educação, quem sabe essa juventude teria futuro. Mas os pais também estão preocupados com a própria vida. É hora extra, é puxar saco de chefe, é dormir pouco, é pagar conta, é essa palhaçada. Na minha época a gente era feliz com o dinheiro do trabalho, e dava tempo de ir ao parque, nos bailinhos nas casas das vizinhas, de fazer a compra do mês e gastar com um supérfluo. Hoje não dá pra fazer mais nada com o dinheiro. A minha aposentadoria não rende, isso porque eu só fico em casa. Pra sair do sofá você já gasta cem reais, Deus que me livre! Não ligo pra isso não, de mundo material. Quero saber é de ficar bem, por isso tomo esse monte de remédio. Quero durar mais uns bons anos. Quero poder reclamar mais da vidinha medíocre que essa geração leva.

Não aguento mais ouvir falar sobre a saudade. Saudade do quê? De mim ou de mim quanto a você? Se a falta é de falar comigo e não de saber de mim, não é saudade, é carência.

Temos saudade de pessoas, de momentos. A saudade é uma lembrança que gostaríamos de viver eternamente. Quando lembramos de alguém que nos faz bem, de algo que nos enche o peito e a mente, sentimos saudades. Ela é integralmente recíproca. A saudade é um lugar que gostaríamos de estar para sempre.

Mas quando alguém diz que sente falta de você, mas o inverso não ocorre, é porque você aguça as memórias da pessoa. Se sentem que precisam conversar contigo, estar ao seu lado e ouvir uma palavra amiga, pode ser que a pessoa só se sinta sozinha e sabe que vai encontrar ao seu lado o apoio que precisa. Saudade não é assistência, é troca. Para sentir saudades de alguém é preciso sentir que a outra pessoa também te conforte, te preencha, te abasteça. Se apenas um dos lados dá suporte, não há saudade, há empatia.

O mundo está cheio de pessoas que precisam de você ou de mim, mas para matar as saudades de fato, ela precisa existir. Se você sente falta do que eu represento na sua vida e não sabe quase nada sobre mim, é apenas mais uma relação onde não existem trocas, apenas entregas. Eu quero alguém que sinta saudades de mim pelo o que sou para mim, não do que sou para o mundo. Sinta saudades do que eu sinto sobre a minha vida, não sobre a sua. Sinta saudades do que eu sinto.

Ele se foi, e como quem parte, não leva nada, a não ser as saudades de quem fica.

Quando alguém vai embora para sempre, você não sabe muito bem o que ela gostaria de levar. A morte não é assunto recorrente e quando ela chega não deixa escolhas, a não ser as dos que ainda estão vivos. Tive que escolher o que Ele iria vestir, sozinho, sem o próprio em corpo ou alma para me ajudar. Não escolhi um terno preto, gravata lilás ou um clichê bem bonito. Peguei uma roupa colorida, pois queria que Ele se sentisse um pouco radiante de onde quer que estivesse se vendo. Escolhi uma polo azul piscina, uma calça preta e sapatos sociais.

Quando alguém parte da matéria, você não sabe qual parte dela a pessoa gostaria de levar. Ele passou a vida carregando coisas nos bolsos, por que ir embora com eles vazios? Não podia deixá-lo com os documentos ou as chaves de casa, já sabia que ele não iria voltar. Então deixei algo meu, uma pulseira que no sol se transforma em um prisma com cores do espectro (ou pequenos arco-íris). Se o mundo estiver certo, no céu há muita luz e não haverá um dia onde o prisma não brilhe.

Não sei se Ele gostou das roupas ou da pulseira, mas acho que de alguma forma ficou contente por eu não ter deixado que ele partisse de bolsos vazios e com qualquer roupa.

Seja qual tenha sido o lugar onde Ele chegou, com certeza causou uma boa impressão.