Desenhou a vida que sempre quis.

Com seu lápis preto,
colocou no papel uma infância de dar inveja a qualquer criança.
Barra-manteiga,
quebra-cabeça,
queimada,
videogame,
fantoches,
faz de conta.

Desenhou a melhor escola,
a melhor escolha,
“o primeiro da classe”.
Tirou “A”,
tirou “10”,
tirou suspiros dos professores.

Se formou e desenhou o melhor emprego.
Se tornou profissional,
tornou o trabalho em carreira,
contornou os chefes,
tornou-se empresa.

Ilustrou uma vida sem sentimentos.
Riscou o amor
Borrou a angústia,
Rasgou o prazer.

Viveu, mas em preto e branco.
Nunca amou em vermelho,
sentiu azul céu ou azul mar,
viu verde-esperança.
Deixou em branco,
amarelou.

A vida,
sem cor,
é só rabisco.

Vivo um eterno querer em um pouco poder. Quero levantar da cama, ter tempo para tomar um banho longo e apreciar um café da manhã de novela. Quero sair de casa e não pegar trânsito, demorar no máximo vinte minutos para chegar ao meu destino. Quero que o caminho da minha rotina seja embalado por música boa, que o shuffle do meu iPod sinta o meu humor e toque só as que eu possa cantar junto, dançar mentalmente. Quero trabalhar com algo que realmente gosto. Quero ganhar dinheiro com um hobby e ser reconhecido pelo o que amo fazer, não pelo o que sou obrigado. Quero ver o trabalho rendendo, me sentir útil. Quero um dia cheio de coisas produtivas para mim, e não só para o mundo. Quero trabalhar, fazer um curso de algo que não tenha nada a ver comigo, cuidar do corpo, cuidar da mente, ver meus amigos, namorar, falar com a minha família e ficar à toa. Quero aprender a tocar um instrumento ou a ser chef de cozinha, ainda que eu use todo esse conhecimento para tocar violão em um almoço que eu mesmo vou preparar. Quero fazer natação, correr no meio da tarde em algum parque, passear com o cachorro. Quero deitar no céu para ver a grama. Quero ver mais meus amigos, tomar cerveja, ir à balada, sentar na frente do portão de casa e falar bobagem, ficar horas no telefone, abraçar sem motivo e me sentir bem ao lado de gente que eu gostaria de ter mais no meu dia. Quero mais tempo para namorar, para ficar na cama deitado falando sobre mim, sobre você, sobre nós, enrolar os meus dedos em seu cabelo, dormir agarrado, fazer sexo, me sentir amado a todo momento e não só quando bater a carência de domingo. Quero ter mais tempo para ajudar a minha mãe na cozinha, escutar minha prima contar sobre o seu primeiro filho, ouvir a minha avó falar sobre remédios e juventude enquanto como o pastel caseiro incrível que só ela sabe fazer, dar risada das piadas do meu avô, reunir todas as gerações em um churrasco. Quero ficar de pernas para o ar, ver televisão, jogar videogame, ler um livro, ver uma série, ficar na internet, tirar fotos, fazer tudo e não fazer nada. Quero viajar mais, pensar nos detalhes, criar roteiros, pesquisar mais sobre o destino, escolher o hotel e a poltrona no avião. Quero viajar sem motivo, sem me programar, cair na estrada e descobrir um lugar novo. Quero, muito, a todo o momento, um novo querer. Mas quero, principalmente, não querer. Quero realizar.

Vem, me consola de novo, diz que vai ficar tudo bem. Fala que foi apenas uma fase ruim, algo que precisávamos passar para aprender e evoluir. Diz que foi proposital, pois sem dor ninguém muda e sem mudança seríamos para sempre os mesmos. Vem, conta que o sofrimento veio de uma vez só e que nunca mais vamos precisar sofrer de novo. Fala que todos os defeitos sumiram e que de agora em diante as brigas serão por causa do pão de forma não ser integral e porque esqueci o guarda-chuva em casa. Diz que todos os problemas foram sanados e que a nossa única preocupação agora é ser feliz. Vem, vira para mim e fala que todos os gritos serão transformados em sorrisos, toda a grosseria em afagos e toda a hipocrisia em devoção. Fala, sem medo, que você só queria me transformar na pessoa mais contente do mundo, mas que precisou dar muitas voltas para chegar perto da alegria. Diz, me abraçando, que essa é a hora da redenção e tudo o que a gente sente um pelo outro será elevado. Vem, do meu lado, e explica que cada lágrima se transformará em remissão eterna. Fala que os nossos pecados se transformaram em bênçãos, que o carinho foi canonizado, os desejos beatificados e o amor santificado. Vem, bem perto, e conta que tivemos um início ordinário, pulamos a metade da história e já vivemos e sofremos pelo término. Fala, encostando o seu peito no meu, que a libertação vem no meio. Diz que o meio é agora e que o agora nunca mais terá fim.