O seu silêncio se tornou música e aprendi a coreografia. Cada palavra que você deixa de falar é um novo passo que aprendo. Meus ouvidos se acostumaram ao vazio e meus pés são levados pela melodia depressiva que a falta de som traz. Vem, diga com os olhos que essa não é a melhor dança da sua vida. Que você só parou de cantar as histórias porque cansou do fim das canções. Vem, abre a boca, fale a verdade, seja grave ou aguda, tira esse vibrato do peito, não comprima mais a dor e o diafragma, desabafe, encontre o tom.

Vem, deixa de ser muda e muda comigo. Muda de vida, muda de ideia, muda de lugar. Faça o som da mudança orquestrar a sua vida e planeje um disco novo. Sei que cansou de ser a mesma que prefere guardar os sentimentos. Que cansou de ser surda com a boca. Vem, deixa eu te mostrar que a vida pode ser um novo single, que falar sobre o que te assola pode ser um novo EP e ser feliz pode te deixar no topo da Billboard. Vem, liga a música, dança comigo.

Sou eterno. Não existe parte minha que não seja do mundo e mundo que não seja meu. Quando eu partir, fechar os olhos e deitar com a escuridão, farei parte de outros universos, outros seres, outras ocasiões. As feições e a carne ficarão presas na madeira, e a minha existência será sufocada pela terra. Apesar de tanta dor, não sentirei nada. Não sentirei que já fugi de mim e fui para outro canto. Quando você não é mais você, você pode ser tudo. Ao morrer, um fragmento da sua vida dá origem a outro. Ao partir, você não se vai por completo. Além de ficar nas lembranças de quem vive, algo quase invisível permanece. Ao morrer, o ínfimo se torna etéreo e dá vida a uma nova vida. Talvez eu nem seja tão grandioso, como quem se torna um cachorro de raça. Acho que o meu menor fragmento tem cara de hortelã ou de erva-cidreira. Vou me tornar chá e todo mundo vai beber um pouco da minha alma. Talvez eu me torne um pomar, uma laranjeira ou uma videira, e o mundo vai me consumir aos poucos, até que eu me acabe em folhas para nascer de novo. Talvez eu me torne terra, para abraçar velhas existências e dar vida a novas.

Não aguento mais esse monte de remédio. Omeprazol, ácido acetilsalicílico, rivotril, paracetamol, diclofenaco e uns outros que nem sei o nome, tudo para me manter de pé. Como é difícil ser velho. Dói tudo. Dói essas crianças gritando alto na rua. Na minha época não era assim. A gente voltava da escola quieto, comportado e andava por 10km até a roça. Hoje é tudo fácil com ônibus, metrô e perua escolar. É por isso que essa meninada cresce e vira bandido. Tem vida boa, sabe? Nunca apanhou de verdade. Tudo hoje é frescura. A mãe não pode mais bater, tem que colocar de castigo senão perde a guarda da criança. Bati em todos os meus filhos quando precisei e estão ótimos, com casa e família. Essas crianças não vão sobreviver nesse mundo, não vão mesmo. Não pisam descalças na rua, não jogam bola, queimada, barra-manteiga, peão, bolinha de gude, não criam anticorpos. Só sabem ficar nesse tal de computador, num tec tec tec sem fim que dá até dor de cabeça. Vão aprender o quê com vida nesse negócio? Não sabem nem mais o que é mandar uma carta, fazer uma ligação. Hoje é tudo chat. Tudo é conversinha com gente estranha, que nunca viram na vida. Por isso que tá tendo um monte de estupro, sequestro, órgãos vendidos, essas coisas. Os pais não tão nem aí, nem sabem o que os filhos tão fazendo. Depois que morrem, os familiares aparecem no jornal chorando, dizendo que não sabem como aconteceu. Imagina! Se tivessem ficado de olho, dado uma boa educação, quem sabe essa juventude teria futuro. Mas os pais também estão preocupados com a própria vida. É hora extra, é puxar saco de chefe, é dormir pouco, é pagar conta, é essa palhaçada. Na minha época a gente era feliz com o dinheiro do trabalho, e dava tempo de ir ao parque, nos bailinhos nas casas das vizinhas, de fazer a compra do mês e gastar com um supérfluo. Hoje não dá pra fazer mais nada com o dinheiro. A minha aposentadoria não rende, isso porque eu só fico em casa. Pra sair do sofá você já gasta cem reais, Deus que me livre! Não ligo pra isso não, de mundo material. Quero saber é de ficar bem, por isso tomo esse monte de remédio. Quero durar mais uns bons anos. Quero poder reclamar mais da vidinha medíocre que essa geração leva.