Cansei de ficar sentado na balança esperando você brincar no gira-gira. Cansei! Tô com o joelho ralado porque um menino da 4ª série me empurrou, e você não tá nem aí pra mim. Tá no seu mundinho, nesse bendito gira-gira, rodando sem parar. Não sei como não sente enjoo. Eu tô com enjoo só de olhar. Esse negócio aí, girando, girando e girando me lembra que às vezes você acha que o mundo gira em torno do seu umbigo, que já não é muito normal, saltado pra fora. Queria muito te dizer que não é porque a professora te dá “A+” em todas as provas, te chama pra apagar a lousa, pra falar pela turma, pra entregar as provas e pra ficar conversando com ela enquanto nossos amiguinhos jogam bola na quadra que você é melhor do que eu ou do que qualquer um aqui. Não é porque você vem de perua escolar, porque sua lancheira tem Toddynho todo dia ou porque sua mãe deixa o seu uniforme sempre impecável que você se destaca mais, tá? Eu mesmo só falo com você porque gosto. Acho que você tem uns papos legais, principalmente quando fala do meu desenho predileto. Temos alguns gostos parecidos, como adorar cachorros e caixas de lápis de cor de 48 cores. Acho que ninguém no mundo tem um gosto tão parecido quanto o nosso. Queria até te chamar pra dormir em casa qualquer dia desses, pra gente fazer uma festa do pijama, sabe? Eu ia falar pra minha mãe fazer brigadeiro e a gente poderia jogar Game Boy até tarde. Depois acordar de madrugada pra falar de fantasmas. Seria divertido, né?

Seria ainda mais divertido se você parasse de girar nesse negócio e me desse atenção. Minha mãe chegou, tô indo pra casa. Tomara que vomite de tanto girar. Queria vomitar também, só que tudo isso que pensei em cima de você.

Entre as inúmeras coisas que quero dizer, não digo. Até porque são coisas, e coisas são apenas coisas, sem definição.

O amor é tipo uma coisa, que não definimos, mas usamos para explicar algumas outras coisas que estamos sentindo. A gente sente amor na maior parte do tempo, mas não sabe o que é, logo o amor é uma coisa.

Por isso, deixei de falar de amor por aí. Achei melhor. Acho, não tenho certeza. Evito falar de coisas, que aquela coisa ali é bela, ou que eu adorei determinada coisa. Não gosto de coisas. Elas não tem forma, ninguém sabe muito bem o que é, nem para que servem.

Quando alguém quer algo e não sabe o nome, diz: “ah, pega aquela coisa ali em cima pra mim?”. Não quero ter que pegar o amor ali em cima, até porque não estou vendo onde ele está. Quando eu preciso comprar algo e não sei o nome, tento explicar. Fico tentando definir a coisa, dando detalhes, mas ninguém entende muito bem o que é, e tenta me dar algo semelhante. Não sei se há algo parecido com o amor, mas se ele é uma coisa, é só uma coisa.

Já pedi para pessoas desconhecidas pegarem coisas pra mim. Gente que nunca vi. Não quero gente pegando o amor, ou essa coisa. Se meteu a mão na coisa, eu não sei que tipo de coisa pode ser, e talvez estejam metendo a mão no amor.

E é tanta coisa dentro da cabeça, tanta coisa dentro da gente, que não sei definir quantas coisas eu sinto ao mesmo tempo. Por isso não digo nada, porque são apenas coisas, ou apenas amor.

Quero as coisas muito bem determinadas, pra eu ter certeza do tipo de coisa que quero, e voltar a falar das coisas que sinto por aí.

A coisa parou de andar. Não sei explicar muito bem, mas até vou tentar. É como estar aproveitando a praia num dia ensolarado qualquer, entrar no mar, começar a nadar para frente e a maré te puxar. É bem parecido também quando você sai disposto pela manhã, mas fica algumas horas no trânsito, parado, inconsolável. Nesses casos, não há muito o que fazer a não ser aguardar a maré estar a seu favor ou o trânsito fluir. Como eu disse, não sei explicar muito bem e de fato não consegui, pois ao contrário do oceano e do congestionamento, não tenho visto nenhum progresso. Aliás, tenho visto algo sim, mas é regresso.

Tenho me sentido com cinco, seis ou sete anos, na época que eu imaginava que quando todos em casa já estivessem dormindo, no meio do breu, apareceria um monstro. Sentia medo, mas nunca vi o tal do monstro, honestamente. Hoje é meio parecido, só que as luzes estão acesas, mas o monstro continua invisível. Sei que quando eu era criança o monstro era apenas uma pulsão, minha imaginação trabalhando a forma com que eu devia encarar o escuro e o fato de ficar sozinho. Hoje o monstro não faz parte da minha pulsão. Ele é impulsionado pela pulsão dos outros que me cercam. Sou eu, administrando o monstro dos mais diversos sentimentos alheios, criando um só para mim.

A soma dessas energias só me faz pensar em uma lenda chamada “Cabeça de Burro”. Ela conta que um lugar não progride se há uma cabeça de burro enterrada no local. É o meu monstro e o dos outros. Sinceramente, eu já identifiquei a cabeça de burro – ou as cabeças. Aliás, quem enterrou a cabeça nesse lugar, se um dia precisar de dinheiro como coveiro, morrerá de fome. A cabeça está ali, aparecendo. Todos estão vendo, mas ninguém faz nada.

Se estou prostrado, a culpa é da cabeça de burro. Tenho visto várias, mas não posso desenterrá-las. As cabeças estão vivas, com tronco e membros, mas os donos das cabeças preferem mantê-las embaixo da terra por ser mais confortável. Burros.